Em uma importante iniciativa para salvaguardar a integridade do processo eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil divulgou em 4 de janeiro de 2024 uma minuta de resolução destinada a regular o uso de inteligência artificial (IA) nas eleições programadas para o mesmo ano. A proposta será submetida a audiências públicas nos dias 23, 24 e 25 deste mês, permitindo que diversas partes interessadas ofereçam sugestões para aprimorar as regras propostas.
Dentre os participantes aptos a apresentar propostas estão pessoas físicas, instituições públicas e privadas, incluindo partidos políticos, os Tribunais Regionais Eleitorais e associações profissionais e acadêmicas. Esse processo de inclusão reflete o compromisso do TSE em envolver uma ampla gama de interessados na definição das normas que regerão a utilização de IA nas campanhas eleitorais.
Um dos temas centrais que deverá atrair considerável debate durante as audiências públicas é a regulação da publicidade e propaganda política, com foco na utilização de ferramentas de inteligência artificial. A minuta apresentada pelo TSE aborda especificamente essa questão, respondendo às preocupações levantadas pelo presidente da corte, ministro Alexandre de Moraes, em dezembro de 2023. Na ocasião, Moraes expressou sua preocupação com o potencial da IA para manipular a vontade do eleitor, defendendo sanções mais severas, como a cassação do registro e do mandato em casos de violação.
Os principais pontos da minuta relacionados à regulamentação da inteligência artificial nas eleições incluem:
- Informação Transparente em Propaganda Eleitoral: A proposta estipula que a utilização de conteúdo fabricado ou manipulado, por meio de tecnologias digitais, deve ser acompanhada de informação explícita e destacada, indicando que o conteúdo foi alterado e qual tecnologia foi utilizada. O descumprimento dessa regra sujeita-se às penalidades previstas no Código Eleitoral.
- Definição de Conteúdo Político-eleitoral Fabricado ou Manipulado: A minuta esclarece que a fabricação ou manipulação de conteúdo político-eleitoral refere-se à criação ou edição de conteúdo sintético que ultrapasse ajustes destinados à melhoria da qualidade da imagem ou som.
- Proibição de Conteúdo Sabidamente Inverídico: Fica vedada a utilização, em qualquer forma ou modalidade de propaganda eleitoral, de conteúdo fabricado ou manipulado contendo fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados, com potencial de prejudicar o equilíbrio do pleito ou a integridade do processo eleitoral.
- Responsabilidade dos Provedores de Aplicação de Internet: Após notificação sobre a ilicitude de conteúdo impulsionado, os provedores de aplicação de internet são responsáveis por adotar medidas para apuração e indisponibilização desse conteúdo. Adicionalmente, devem adotar e divulgar medidas que impeçam ou reduzam a circulação de conteúdo ilícito, incluindo mecanismos eficazes de notificação, acesso a canais de denúncias e ações corretivas e preventivas.
Estas medidas serão debatidas pelo TSE por meio de audiência pública, que poderão fazer parte da revisão da Resolução-TSE nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019, que dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. As alterações propostas incluem, entre outros aspectos:
- Impulsionamento durante a Pré-campanha: A minuta estabelece regras claras para o impulsionamento de conteúdo político-eleitoral durante a pré-campanha, vedando pedido explícito de votos e exigindo moderação e transparência nos gastos. Os provedores de aplicação são obrigados a manter ferramentas de transparência sobre a publicidade.
- Conteúdo Pré-campanha e Tecnologias Digitais: O conteúdo político-eleitoral veiculado antes do período oficial de campanha deve seguir regras específicas de transparência e informação ao cidadão sobre o uso de tecnologias digitais.
- Classificação de Conteúdos por Agências de Verificação: A classificação de conteúdos por agências de verificação de fatos, em cooperação com o TSE, será independente e servirá como parâmetro para aferição de violações ao dever de cuidado.
- Vedação ao Uso de Ferramentas Tecnológicas para Adulteração de Mídias: O texto propõe a proibição do uso de ferramentas tecnológicas para adulterar ou fabricar áudios, imagens, vídeos ou outras mídias com o intuito de difundir crenças em fatos falsos relacionados a candidatos ou à disputa eleitoral.
- Responsabilidade na Comercialização de Impulsionamento: Os provedores de aplicação de internet só poderão impulsionar conteúdo para promover ou beneficiar candidaturas, sendo vedado o uso para propaganda negativa. Além disso, a priorização paga de conteúdos em busca na internet deve seguir diretrizes específicas, proibindo práticas que promovam propaganda negativa ou disseminem dados falsos.
- Proteção de Dados Pessoais e Discriminação: A minuta estabelece diretrizes claras para o tratamento de dados pessoais sensíveis, proibindo a formação de perfis de eleitores sem consentimento específico. Também veda o uso de dados para discriminação ilícita ou abusiva.
- Live Eleitoral: Entendida como transmissão digital realizada por candidata ou candidato para promover sua candidatura com ou sem participação de terceiros – constitui ato de campanha eleitoral de caráter público (art. 29-A). Aplicam-se às lives as mesmas regras referentes à propaganda eleitoral na internet, inclusive a proibição quanto à transmissão ou à retransmissão em sites de pessoas jurídicas.
Essas mudanças demonstram o compromisso do TSE em enfrentar os desafios da era digital, assegurando a lisura e a transparência no processo eleitoral. As audiências públicas proporcionarão uma plataforma para discussões construtivas, garantindo que as normas finais sejam abrangentes, equilibradas e eficazes.
Texto em co-autoria:
Dra. Lamara Stefane
Especialista em Direito Eleitoral, Direito do Consumidor, Direito Público e Psicologia Jurídica.
Dra. Amanda Saldanha
Especialista em Direito Digital, LGPD e Segurança da Informação